AUTOVALORES DO LAPLACIANO NO DISCO



Seja $ \,D\,$ o disco $ \,D=\{(x,y)\in\mathbb{R}^2 \mid \,
x^2+y^2<1\,\}\,$ e denotemos por $ \,\gamma\,$ a sua circunferência. Vamos determinar os autovalores e as autofunções do laplaciano no disco $ \,D\,$, isto é, vamos considaderar o problema

$\displaystyle \left\{
\begin{array}{l}
\Delta\,\phi\,=\phi_{rr}+\displaystyle
\...
...a )=0 \rule[0.6cm]{0cm}{0cm} \ \ , \ \ \text{ em } \ \gamma
\end{array}
\right.$ (1)

Pelo método de separação de variáveis, procuramos a autofunção na forma

$\displaystyle \phi(r,\theta)=\varphi(r)\,\psi(\theta) \ . 
$

Substituindo em (1) temos

$\displaystyle \frac{r^2\varphi''(r)+r\varphi'(r)-\lambda\,r^2\varphi(r)}{\varphi(r)}
=-\frac{\psi''(\theta )}{\psi(\theta)}=\mu 
$

Temos, então,

$\displaystyle \left\{
\begin{array}{l}
\psi''(\theta )+\mu \,\,\psi(\theta )=0 \\ 
\psi (\theta+2\,\pi)=\psi(\theta) \rule[0.6cm]{0cm}{0cm} 
\end{array}
\right.$ (2)

e

$\displaystyle r^2\varphi''(r)+r\,\varphi'(r)-(\lambda\,r^2+\mu)\,\varphi(r)=0 \ .$ (3)

Como já vimos antes, as soluções não triviais de (2) são:

$\displaystyle \psi_0(\theta)=A_0 \ , \qquad \mu_0=0$ (4)

e

$\displaystyle \psi_n(\theta)=A_n\cos n\,\theta +B_n\,{\rm sen}\,n\,\theta \ , \qquad
\mu_n=n^2 \ , \quad n=1,2,3,\ldots\,.$ (5)

Pondo estes valores de $ \mu$ na equação (3) e pondo também $ \,\lambda =-\alpha ^2,\,$ com $ \,\alpha >0\,$, pois sabemos que para qualquer região $ \,D\,$ os autovalores do laplaciano são todos negativos, temos

$\displaystyle r^2\varphi''(r)+r\,\varphi'(r)+(\alpha^2\,\,r^2-n^2)\,\varphi(r)=0 \ .$ (6)

A equação (6) se reduz a uma equação de Bessel através da mudança de variável $ \,s=\alpha\,r\,$. De fato, pela regra da cadeia,

$\displaystyle \frac{d\varphi}{dr}=\frac{d\varphi}{ds}\,\frac{ds}{dr}=
\alpha\,\frac{d\varphi}{ds}$ (7)

e, multiplicando por $ \,r\,$,

$\displaystyle r\,\frac{d\varphi}{dr}=s\,\frac{d\varphi}{ds} \ .$ (8)

Derivando (7) mais uma vez e usando novamente a regra da cadeia, obtemos

$\displaystyle r^2\,\frac{d^2\varphi}{dr^2}=s^2\,\frac{d^2\varphi}{ds^2} \ .$ (9)

Substituindo (8) e (9) na equação (6), obtemos

$\displaystyle s^2\,\frac{d^2\varphi}{ds^2}+s\,\frac{d\varphi}{ds}+
(n^2-s^2)\,\varphi=0 \ ,$ (10)

que é a equação de Bessel de índice $ \,n\,$. Portanto, se pensarmos em $ \,\varphi\,$ expressa como função de $ \,s\,$ e não de $ \,r\,$, teremos $ \,\varphi(s)=C_1\,J_n(s)\,+\,C_2\,Y_n(s)\,$. Voltando a expressar $ \,\varphi\,$ em função de $ \,r\,$, $ \varphi(r)=C_1\,J_n(\alpha\,r)+C_2\,Y_n(\alpha\,r)\,$. Lembrando agora que as funções envolvidas devem ser finitas e estar bem definidas para $ \,r=0\,$, pois $ \,r=0\,$ corresponde à origem, que é um ponto do disco $ \,D\,$, vê-se que é preciso que $ \,C_2=0\,$, ou seja,

$\displaystyle \varphi(r)=C\,J_n(\alpha\,r) \ .
$

Nossa conclusão, até agora, é que as funções

$\displaystyle \phi(r,\theta)=A_0\,J_0(\alpha\,r)$ (11)

$\displaystyle \phi(r,\theta)=J_n(\alpha\,r)
\Bigl(A_n\cos n\,\theta+B_n\,{\rm sen}\,n\,\theta\Bigr) \ , 
\qquad n=1,2,3,\ldots\,.$ (12)

satisfaz $ \,\Delta \phi=-\alpha ^2\,\phi\,$. Precisamos ainda verificar para quais valores de $ \,\alpha\,$ a função $ \,\phi\,$ cumpre também a condição de fronteira $ \,\phi=0\,$ em $ \,\gamma\,$, isto é, $ \,\phi(1,\theta)=0\,$. Tanto para (11) quanto para (12), de

$\displaystyle \phi(1,\theta)=0 \ ,$    para todo $\displaystyle \ \theta
 \ ,
$

segue que $ \,\alpha\,$ deve cumprir a condição $ \,J_n(\alpha)=0\,$, isto é, $ \,\alpha\,$ deve ser um dos zeros (positivos) da função de Bessel $ \,J_n\,$. Sabemos que $ J_n$ se anula para uma infinidade de zeros. Existe toda uma seqüência de zeros positivos de $ J_n$

$\displaystyle \alpha_{n1}<\alpha_{n2}<\alpha_{n3}<\ldots<\alpha_{nm}<\ldots \ .
$

Conclusão: Os autovalores do laplaciano no disco $ D$ são

$\displaystyle \lambda_{nm}=-\bigl(\alpha_{nm}\bigr)^2 \ .$ (13)

A uma autovalor da forma $ \,\lambda_{0m}=-\bigl(\alpha_{0m}\bigr)^2\,$ corresponde a autofunção

$\displaystyle \phi_{0m}(r,\theta)=J_0(\alpha_{0m}\,r) \ .$ (14)

A um autovalor $ \,\lambda_{nm}=-\bigl(\alpha_{nm}\bigr)^2\,$ com $ \,n=1,2,3,\ldots\,$ correspondem duas autofunções linearmente independentes

$\displaystyle \phi_{nm}^{(1)}(r,\theta)=J_n(\alpha_{nm}\,r)\,\cos n\,\theta$    e $\displaystyle \qquad
\phi_{nm}^{(2)}\,(r,\theta )=J_n(\alpha_{nm}\,r)\,\,{\rm sen}\,n\,\theta$ (15)

As autofunções (14) são funções radiais, isto é, dependem somente da coordenada polar $ r$, ou seja, suas curvas de nível são os círculos centrados na origem, ou ainda, seus gráficos são superfícies de revolução. Qualquer combinação linear de $ \displaystyle\,\phi_{nm}^{(1)}(r,\theta)\,$ e $ \displaystyle\,\phi_{nm}^{(2)}(r,\theta)\,$ dadas por (15) é autofunção correspondente ao autovalor $ \,\lambda_{nm}\,$, $ \,n=1,2,3,\ldots\,$. Logo qualquer função da forma

$\displaystyle \phi(r,\theta)=J_n(\alpha_{nm}\,r)\,\,{\rm sen}\,\bigl(n\,\theta+\phi_n\bigr)$ (16)

é uma autofunção correspondente ao autovalor $ \,\lambda_{nm}\,$. Todas as autofunções (16) são obtidas de $ \displaystyle\,\phi_{nm}^{(1)}(r,\theta)\,$ por uma rotação.

Ortogonalidade. Vimos na parte 1 que as autofunções do laplaciano em um domínio $ \,D\,$ qualquer são ortogonais. Lembrando que $ dx\,dy=r\,dr\,d\theta\,$, vemos que neste caso a ortogonalidade se traduz por

$\displaystyle \int_0^{2\,\pi}\int_0^1\phi_{nm}^{(i)}(r,\theta)\,
\phi_{lk}^{(j)}(r,\theta)
\,r\,dr\,d\theta =0 \quad ,$    se $\displaystyle \quad (n,m,i)\neq
(l,k,j) \ .$ (17)

Na verdade, para muitos valores dos índices, esta informação poderia ter sido facilmente obtida diretamente. Por exemplo,

$\displaystyle \int_0^{2\pi
}\int_0^1\phi_{nm}^{(1)}(r,\theta )\,\,\phi_{lk}^{(2)}(r,\theta
)\,r\,dr\,d\theta
$

$\displaystyle =\left(\int_0^1J_n(\alpha_{nm}\,\,r)\,J_l(\alpha
_{lk}\,r)\,r\,dr...
...int_0^{2\pi}\cos n\,\theta
\,\,{\rm sen}\,k\,\theta \, d\theta \right) =0 \ , 
$

pela ortogonalidade do sistema de senos e cossenos em $ \,[0, 2\,\pi]\,$. No entanto, a relação de ortogonalidade (17) nos dá uma conclusão não trivial no caso $ \,n=l\,$, $ \,i=j\,$, que é

$\displaystyle \int_0^1\,J_n(\alpha_{nm}\,r) \,J_n(\alpha_{nk}\,r)\,r\,dr=0 
\quad,$    se $\displaystyle \quad m\neq k \ .$ (18)

Em outras palavras, para qualquer $ \,n\,$, as funções $ \,\{\,J_n(\alpha_{nm}\,r)\,\}_{n=1}^\infty\,$ constituem um sistema ortogonal em relação ao produto interno $ \,\left\langle \,f,g\right\rangle=\int_0^1\,f(r)\,g(r)\,r\,dr\,$, ou ainda, na nomenclatura mais clássica, são ortogonais no intervalo $ \,[0,1]\,$ em relação ao peso $ \,p(r)=r\,$. Note a semelhança com a ortogonalidade, por exemplo dos $ \,\{\,{\rm sen}\,n\pi\theta\}\,$ no intervalo $ \,[0,1]\,$. Os $ \,n\pi\,$ são justamente os zeros positivos da função $ \,\,{\rm sen}\,\theta\,$. Assim também os $ \,\{\,\alpha_{nm}\,\}_{m=1}^\infty\,$ são os zeros positivos da função $ \,J_n(r)\,$. Do mesmo modo que os $ \,{\rm sen}\,\!(n\pi\theta)\,$ são ortogonais em $ \,[0,1]\,$, os $ \,J_n(\alpha_{nm}\,r)\,$ também são, devendo-se ter o cuidado de escolher o peso conveniente. Devemos mencionar, ainda, que a relação de ortogonalidade (17) das funções de Bessel pode ser deduzida fora do contexto das autofunções do laplaciano no disco, usando somente propriedades das funções de Bessel. Isto pode ser visto na maioria dos livros que tratam de funções de Bessel, por exemplo,

Bowman, F. - Introduction to Bessel Functions (página 108, fórmula (6.62) )

Esta relação de ortogonalidade abre a possibilidade para o seguinte tipo de expansão:
Dada uma função $ \,f:[0,1]\longrightarrow\mathbb{R}\,$ e fixado um $ \,n\,$, expressar $ f(r)$ como

$\displaystyle f(r)=\sum_{m=1}^\infty A_{nm}\,J_n(\alpha_{nm}\,r) \ .$ (19)

Resulta que a expansão acima, chamada de série de Fourier-Bessel, é possível para toda função razoável. Para calcular os coeficientes $ A_{nm}$ precisamos ainda da expressão das normas:

Prop. $ \displaystyle\left\Vert \,J_n\right\Vert^2
=\left\langle \,J_n\,,\,J_n\,\right...
...pha_{nm})\right]^2=
\frac{1}{2}\left[ J_n^{\,\prime }(\alpha_{nm})\right]^2 \ .$
Não vamos aqui dar a demonstração deste fato, que também pode ser vista no livro de Bowman citado acima (fórmula (6.63) ). Vamos apenas assinalar que dela decorre, como nas séries de Fourier, que, na expansão (19), os coeficientes são dados por

$\displaystyle A_{nm}=\frac{2}{\left[ J_{n+1}(\alpha_{nm})\right]^2}\,
\int_0^1\,f(r)\,J_n(\alpha_{nm}\,r)\,r\,dr \ .$ (20)


Exemplo. Expandir a função constante $ \,f:(0,1)\longrightarrow\mathbb{R}\,$, $ \,f(r)=1\,$ em série de Fourier-Bessel

$\displaystyle f(r)=\sum_{n=1}^\infty A_{0m}\,J_0(\alpha_{0m}\,r) \ .
$

De acordo com (20), os coeficientes são dados por

$\displaystyle A_{0m}=\frac{2}{\left[ J_1(\alpha_{0m})\right]^2}\,
\int_0^1J_0(\alpha_{0m}\,r)\,r\,dr \ .
$

Conforme vimos em um dos exercícios sobre funções de Bessel, a partir das expressões em séries de potências para $ J_0(x)$ e para $ J_1(x)$, pode-se facilmente verificar que

$\displaystyle \bigl(x\,J_1(x)\bigr)'=x\,J_0(x) \ .
$

Segue que

$\displaystyle \int_0^1\!J_0(\alpha_{0m}r)\,r\,dr=\frac{1}{\alpha_{0m}^2}
\int_0...
...m}r\,\alpha_{0m}dr
=\frac{1}{\alpha_{0m}^2}\int_0^{\alpha_{0m}}\!J_0(s)\,s\,ds
$

$\displaystyle =\left.\frac{1}{\alpha_{0m}^2}\,s\,J_1(s)\right\vert _{s=0}^{s=\alpha_{0m}}=
\frac{J_1(\alpha_{0m})}{\alpha_{0m}} \ .
$

Logo

$\displaystyle A_{0m}=\frac{2}{\alpha_{0m}\,J_1(\alpha_{0m})}
$

e, finalmente,

$\displaystyle 1=f(r)=\sum_{n=1}^\infty
\frac{2\,J_0(\alpha_{0m}\,r)}{\alpha_{0m}\,J_1(\alpha_{0m})}
 \ ,$    para $\displaystyle \ r\in(0,1) \ .
$


Para ver os gráficos de algumas somas parciais desta expansão clique aqui.

Pode-se expandir a mesma função usando $ J_1$ em lugar de $ J_0$.

Aplicação à membrana vibrante circular. As ondas estacionárias na membrana circular são, por (16), da forma

$\displaystyle u_{nm}(r,\theta,t)=\phi_{nm}(r,\theta)\bigl(A\cos c\,\alpha_{nm}\,t+
B\,{\rm sen}\,c\,\alpha_{nm}\,t\bigr) \ ,
$

onde

$\displaystyle \phi_{nm}(r,\theta)=J_n(\alpha_{nm}\,r)\,\,{\rm sen}\,\!\bigl(n\,\theta+\phi\bigr) 
$

ou, equivalentemente,

$\displaystyle \phi_{nm}(r,\theta)=\bigl(C\cos n\,\theta+D\,{\rm sen}\,
n\,\theta\bigr)J_n(\alpha_{nm}\,r) \ .
$

A primeira das expressões acima para $ \phi_{nm}$ permite facilmente identificar as linhas nodais desta onda estacionária:

$\displaystyle u_{nm}(r,\theta,t)=0 \ \Longleftrightarrow \ 
\phi_{nm}(r,\theta)=0 \ \Longleftrightarrow \ J_n(\alpha_{nm}\,r)=0 \ $    ou $\displaystyle \
\,{\rm sen}\,\bigl(n\,\theta+\phi\bigr)=0 \ .
$

(O símbolo `` $ \Longleftrightarrow$" significa ``se e somente se"). Como $ r$ varia no intervalo $ [0,1]$,

$\displaystyle J_n(\alpha_{nm}\,r)=0 \ ,$    para $\displaystyle \quad
r=0,\,\frac{\alpha_{n1}}{\alpha_{nm}},\,\frac{\alpha_{n2}}{\alpha_{nm}},
\ldots,\,\frac{\alpha_{nm-1}}{\alpha_{nm}},\,1 \ .
$

Segue daí que os círculos centrados da origem com raios da forma $ \displaystyle\,\frac{\alpha_{nj}}{\alpha_{nm}}\,$, $ \,j=1,2,\ldots,m-1\,$ são linhas nodais. Além disto,

$\displaystyle \,{\rm sen}\,\bigl(n\,\theta+\phi\bigr)=0
$

sobre $ n$ diâmetros do disco unitário $ D$ (estes diâmetros dividem $ D$ em partes iguais). Estes diâmetros também são, portanto, linhas nodais.

Caso particular - vibrações com simetria radial. Este é o caso particular em que a função $ \,\phi(r,\theta)=\phi(r)\,$ depende só de $ r$. Por (14), as ondas estacionárias com simetria radial são da forma

$\displaystyle \phi(r,\theta)=CJ_0(\alpha_{0m}\,r) \ .
$

As linhas nodais são os círculos $ \displaystyle\,r=
\frac{\alpha_{0j}}{\alpha_{0m}}\,$, $ \,j=1,2,\ldots,m-1\,$.

Para ver os gráficos de algumas autofunções do laplaciano no disco, bem como animações das correspondentes ondas estacionárias na membrana circular, clique aqui


Eduardo Brietzke