Etnomatemática: uma crítica


A noção de cultura

Uma das mais interessantes áreas da Antropologia é a Antropologia Cultural ou Etnologia. Essa, como já diz o nome, dedica-se ao estudo das culturas humanas.

Segundo a Antropologia, uma cultura é o sistema formado pelas ferramentas e instrumentos de trabalho ou produção, pelas instituições ( de ensino, profissionais, jurídicas, religiosas, etc ), pela linguagem, pelos costumes ( sociais, recreativos, etc ), pelas crenças e rituais religiosos, e o conhecimento científico e técnico que um grupo humano criou ou adotou para viver e que transmite de geração a geração.


Matemática como cultura

A primeira pessoa a ver a Matemática como cultura parece ter sido Raymond Wilder, em conferência entitulada The cultural basis of Mathematics, no Congresso Internacional de Matemáticos de 1 950. Wilder continuou a desenvolver suas idéias por várias décadas, através de vários artigos e livros, entre os quais o Mathematics as a Cultural System, publicado pela Pergamon Press em 1 981.

Há mais de 20 anos estamos adotando as idéias de Wilder em nosso curso de História da Matemática. Com efeito, a intenção de Wilder é a usar a noção de cultura matemática como ferramenta para entender a evolução das idéias matemáticas sob uma ótica histórica. Defendemos que isso não só é muito válido como é a única maneira de entendermos as motivações e os valores norteando a produção de matemática.

E X E M P L O:
Entre os gregos antigos, tinhamos duas culturas matemáticas: a dos mathematikói e a dos logistikói. A Mathematiké era estudada nas academias por membros da aristocracia grega e, como tal, abominava as aplicações ( coisa de escravos e trabalhadores braçais ), era uma matemática teórica, a mesma que nos deu os Elementos de Euclides. Já a Logistiké era uma matemática prática, usada pelos comerciantes e povo em geral, tipicamente aprendida nas escolas de pedagogos que funcionavam na praça da feira. Tendo-se em vista apenas essas breves colocações já fica fácil se ver o absurdo de se falar em "matemática grega"; temos é de falar em "matemáticas gregas".

E X E R C I C I O
Usando o texto acima:
a).- compare as instituições de ensino das culturas matemáticas gregas
b).- compare as motivações dessas culturas
c).- explique por que Euclides, em seu Elementos, não traz uma única aplicação da Geometria
d).- Archimedes poderia ser considerado como um mathematikós no sentido estrito da palavra? DICA: Archimedes calculou uma aproximação do PI


E X E R C I C I O
Pelo que V. sabe dos egípcios antigos e/ou consultando a secção História da Matemática deste site:
compare a matemática dos seus escribas governamentais, a dos seus agrimensores e a dos comerciantes e povo egípicio em geral.
Por exemplo: usavam o mesmo sistema de numeração? A partir dessas comparações, V. pode ver porque é erro muito grave usar a expressão "matemática egípcia" em vez de "as matemáticas egípcias"?


A Etnomatemática

Surgiu 35 anos depois da conferência de Wilder. Trata-se de uma mistura da idéia de cultura matemática com idéias político-pedagógicas de cunho progressista, tendo sido criada pelo Prof Ubiratan d'Ambrósio, da Universidade de Campinas.

Mas deixemos que seu criador nos explique. Em Ethnomathematics and Its Place in the History and Pedagogy of Mathematics, in For the Learning of Mathematics, Vol. 5, FLM Publishing Association, Canada, 1985, d'Ambrósio escreve:

Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais como as sociedades indígenas, grupos de trabalhadores, crianças de uma certa faixa etária, classes profissionais e etc.

Em seu mais recente Curso de Etnomatemática na Universidade Virtual, março de 1998, ele já se apresenta bem mais político do que antropólogo, pois afirma:

etnomatemática é uma proposta política, embebida de ética, focalizada na recuperação da dignidade cultural do ser humano. Já é tempo de parar de fazer dos trajes tradicionais dos povos marginalizados fantasias, dos mitos e religiões desses povos folclore, da medicina desses povos crime. E da sua matemática curiosidades.

As idéias da Etnomatemática tiveram uma pronta e enorme aceitação entre os professores norte-americanos. Em nossa avaliação, esse sucesso decorre do fato que o processo de massificação do ensino norte-americano criou um meio ideal e fértil para a propagação dessas idéias:

  • a população negra e latino-americana é lá parte importante do corpo escolar, sendo mesmo majoritária em muitas regiões do país
  • essas populações tem um padrão econômico inferior à população branca, estando por isso desmotivadas e muito pouco interessadas em estudos acadêmicos e, principalmente, em estudos abstratos como Matemática; isso refletindo-se pelas notas obtidas por alunos dessas populações ( bem inferiores às dos brancos e dos asiáticos ) bem como por muitos problemas de indisciplina
Assim que, tenhamos a coragem e franqueza de o dizer, a Etnomatemática foi aproveitada para dar o suporte teórico e o ingrediente prático para simultaneamente resolver o problema da desmotivação e do baixo desempenho dos negros e latino-americanos nas escolas americanas:

  • conteúdos muito diferentes, recheados com discussões ( quase sempre fantasiosas ) acerca de pretensas contribuições da cultura negra ao pensamento científico e matemático ( egípcios teriam sido negros e os pais da matemática, a qual foi ensinada aos gregos; Euclides teria sido negro, etc, etc  )
  • testes e exames diferentes dos dos alunos brancos e asiáticos ( pois os partidários da Etnomatemática defendem que cada cultura tem seus padrões de exigência  )
enfim, o aluno que antes era desmotivado, agora sente-se valorizado culturalmente e incentivado por boas notas em provas com baixo ou nenhum conteúdo matemático.


A Etnomatemática na prática

A Etnomatemática não é um fenômeno isolado na "renovação" da Escola. Ela constitui a componente matemática do multiculturalismo que está afetando várias disciplinas do primário e secundário. Por sua vez, o multiculturalismo junto com o construtivismo, ambientalismo, feminismo, integra os quatro vetores que norteiam essa "renovação".

No caso da Matemática, essas idéias reformistas tem a denominação de Nova Nova Matemática, sendo essa, então, uma mistura de construtivismo, multiculturalismo, feminismo e ambientalismo, e cuja dosagem varia segundo as várias correntes reformistas.

Assim que a difusão da Etnomatemática na Escola está ocorrendo através da Nova Nova Matemática. Essa difusão está bem mais adiantada no ensino norte-americano, onde pode-se dizer - sem medo de simplificar exageradamente - que, a nível de sala de aula, a Etnomatemática muito pouco tem de multicultural uma vez que limita-se a procurar mostrar que a cultura européia não passa do que teria sido roubado dos negros egípcios.
Aqui no Brasil, se examinarmos as provas do ENEM, é fácil ver que embora o construtivismo, feminismo e ambientalismo já apareçam claramente nas diversas disciplinas do Ensino Médio, o multiculturalismo parece ainda limitar sua ação à História. Com efeito, a Etnomatemática ainda tem uma penetração tímida na escola brasileira, parecendo limitar-se à algumas escolas religiosas e às escolas públicas de governos municipais e estaduais de partidos de esquerda ( o exemplo mais estarrecedor disso está ocorrendo no atual governo do RGS, vide o documento "Aqui são outros quinhentos", divulgado pela Secretária de Educação e Cultura deste estado e que consiste numa muito clara prova do uso de um culturalismo de quinta categoria para ganhar poder político ). Além disso, ao contrário do multiculturalismo norte-americano que enfatiza a cultura negra, a Etnomatemática brasileira enfatiza mais a matemática ( ? ) dos indios e dos excluídos (  meninos de rua, sem terra, etc ).

No que segue-se, divulgamos alguns depoimentos acerca da Etnomatemática na sala de aula e nos livros-texto.

CRITICAS de JOHN SAXON
( O que segue são trechos do artigo NCTM are a bad joke, publicado em fev. 1996, na Education Week, por John Saxon )

O desastre da Nova Nova Matemática é mais evidente em escolas onde é maior a concentração de minorias raciais. Contudo, os líderes do NCTM não querem encarar os fatos. Ao contrário, eles defendem que alunos de minorias podem avançar mais rápido se lhes dermos testes "aguados". Eu cito do Assesment Standards of the NCTM:

Muitas vezes, os testes e exames funcionam como filtros que negam ás minorias o acesso a estudos posteriores de matemática. Atualmente, o desenvolvimento de cada criança de nossa sociedade multicultural deve ser valorizdo. Os testes não devem ser usados para negar aos estudantes a oportunidade de aprender matemática importante

Estou intrigado pelo eufemismo "minorias". Acho que eles estão falando em estudantes negros, indios e latino-americanos. A idéia que não podemos ensinar a esses estudantes a mesma matemática que ensinamos aos brancos e aos asiáticos é revoltante.

A tarefa do NCTM deve ser achar um meio de conseguir ensinar a mesma matemática a todos os estudantes. Não precisamos mudar os testes. Afinal, todos os alunos irão competir pelos mesmos empregos e serão aprovados para funções em termos de sua capacidade de produzir e não por sua origem racial. Se alunos se saem mal em teste padrões, isso significa que seus professores terão de lhes dar mais atenção. A idéia que os testes são usados para negar aos estudantes o acesso à matemática de importância prática é repugnante.



CRITICAS de B. ORTIZ de MONTILLANO
( O Prof Bernard é um dos mais antigos estudiosos e críticos do multiculturalismo; o que se segue são trechos de seu artigo Post Modern Multiculturalism, publicado na American Journal of Physics, 4 October de 1 997. Para entender adequadamente seu artigo, tenha em vista que o Prof Bernard está preocupado com o ensino de todas as disciplinas científicas e não tão somente com a Matemática! )

........A interação do Pós-modernismo com o Multiculturalismo não tem chamado a devida atenção dos críticos, mas pode trazer graves consequências uma vez que isso tudo faz parte das idéias progressistas que estão sendo implementadas nas escolas. Algumas de suas téses: 1). Outras maneiras de se explicar a realidade são tão ou mais válidas do que a científica, 2). A ciência ocidental é motivada pelo imperialismo e capitalismo, 3). Os povos de cor são espiritual e moralmente mais evoluídos que os de origem européia, 4). Os fenômenos paranormais são cientificamente comprovados e 5). os mitos constituem explicações válidas dos fenômenos naturais.

......Os pós-modernistas afirmam que a ciência é "interesseira" ( NT: motivada por interesses masculinos e capitalistas ) e não reflete o mundo real, então outras abordagens ( as de culturas de maior influência feminina, como as africanas e a azteca, que incluem intuição, magia e religião ) são comparáveis e talvez até superiores à científica. Essas críticas incluem afirmações tais como a de que o surgimento da Mecânica Quântica, e particularmente do Princípio da Incerteza de Heisenberg, mostrou que a Física não é mais capaz de produzir informações confiáveis acerca da Natureza e perdeu toda a objetividade. Os pós-modernistas distorcem o pensamento de Thomas Kuhn ( The Structure of Scientific Revolutions ) procurando mostrar que ele prova que a ciência ocidental é uma construção mental determinada socialmente. De modo semelhante, eles distorcem a Teoria da Caoticidade para tentar convencer aos cientificamente ingênuos que a ciência não é mais capaz de fazer previsões confiáveis.

Não posso deixar de simpatizar com os esforços dos professores de escolas norte-americanas em zonas pobres, em especial com seus esforços de aumentar a auto-estima e o sucesso escolar de seus alunos. A idéia de que negros são biologicamente superiores aos brancos, ou que egípcios e maias tinham conhecimento superior ao dos modernos cientistas é atraente aos professores dessas escolas, principalmente para aqueles que não tem formação científica adequada para julgar essas afirmações. Contudo, os meios não devem ser justificados pelos fins. Ensinar pseudociência, independentemente da razão, só fará diminuir a possibilidade de essas minorias terem sucesso no mundo real.

CRITICAS de MARTIN GARDNER
( o que se segue é uma tradução não autorizada de trechos do artigo The New New Mathematics, de Martin Gardner, publicado no New York Review of Books, em 24 setembro de 1 998 )

.......Etnomatemática é uma outra palavra popular ( NT: na implementação do multiculturalismo na Escola ). Ela refere-se à matemática praticada por culturas não ocidentais, especialmente a das tribos africanas primitivas. Isso é o que se vê em, por exemplo, um dos mais adotados livros pelos admiradores da Nova Nova Matemática: o Ethnomathematics: a Multicultural View of Mathematical Ideas, de Marcia Ascher ( 1 991 ).
O estudo de como as culturas pré-industriais, antigas e modernas, trataram os conceitos matemáticos tem um valor histórico, mas é vital que tenhamos em vista que a Matemática, como outras ciências, é um processo de permanente acúmulo de conhecimento, conhecimento esse que é o mesmo em todas as partes do mundo. tribos nativas podem usar sistemas de numeração diferentes do nosso, mas a matemática por trás do simbolismo é a mesma. Dois elefantes mais dois elefantes são quatro elefantes em todas as tribos africanas

CRITICAS de JOHN LEO
( o que se segue é uma tradução não autorizada de trecho do artigo The so called Pythagoras, de John Leo, publicado no US News & World Report, em 26 de maio de 1 997 )

..........a Nova Nova Matemática, consequentemente também vagamente endossa o alegado novo campo da Etnomatemática. A maioria de nós pode pensar que a Matemática é uma disciplina abstrata e universal, que pouco tem a ver com etnicidade. Mas os etnomatemáticos, que estão muito ocupados fazendo congressos e escrevendo livros, afirmam que as pessoas tem uma matemática natural a qual está vinculada à sua cultura. A matemática do Mundo Ocidental, por exemplo, não é universal mas apenas uma expressão da cultura dos brancos sobre os não-brancos. Muito disso vem acompanhado por ataques ao eurocentrismo. Num livro de ensaios sobre Etnomatemática inicia-se lembrando que a Europa não existe, pois é apenas uma península do continente Eurasiano... Boa parte do livro é gasta insistindo que povos sem escrita tinham vários tipos de manifestações matemáticas, de padrões de tecelagem a um osso africano com riscos que deviam ter sido usados para contagem.

Tudo não passa de tolices, mas é onde o multiculturalismo anda agora. A menos que V. vá estudar em uma escola de engenharia que use ábacos Yoruba, ou a menos que V. costume verificar seu talão de cheques ao estilo dos indios navajos, provavelmente o melhor a fazer seja ignorar esse tipo de coisas. .........




versão: 04-jul-2 001
local desta página: http://athena.mat.ufrgs.br/~portosil/polemica.html
© J.F. Porto da Silveira ( portosil@mat.ufrgs.br )
permitida a reprodução, desde que com fins acadêmicos e não comerciais