Três noções numéricas básicas: número, numeral e algarismo


Iniciaremos nosso estudo do zero examinando as noções de número, numeral e algarismo para não cometermos o erro comum de confundir as três facetas do zero:

  • zero como número
  • zero como numeral
  • zero como algarismo


versao: 20 maio 2 001

1.- Conceitos



Número Numeral algarismo
é a idéia de quantidade que nos vem à mente quando contamos, ordenamos e medimos. Assim, estamos pensando em números quando contamos as portas de um automóvel, enumeramos a posição de uma pessoa numa fila ou medimos o peso de uma caixa. é toda representação de um número, seja ela escrita, falada ou indigitada. é todo símbolo numérico que usamos para formar os numerais escritos


sistema de numeração

E' todo conjunto de regras para a produção sistemática de numerais.
No caso de sistemas de numeração escrita, a produção dos numerais é feita através de combinações de algarismos e eventuais símbolos não numéricos ( como a vírgula no sistema indo-arábico, o vinculum no sistema romano etc ).


2.- Exemplos



EXEMPLO
O número vinte e três pode ser representado pelo numeral XXIII ( no sistema romano ), pelo numeral 23 ( no sistema indo-arábico ) e de muitas outras maneiras. No sistema indo-arábico, sua prepresentação usou os algarismos 2 e 3, e no sistema romano usou os algarismos X e I.

EXEMPLO
O número doze é representado pelo numeral 12 no sistema indo-arábico decimal e pelo numeral C no sistema indo-arábico hexadecimal. Na primeira representação foram utilizados dois algarismos ( o 1 e o 2 ) e na segunda um único algarismo ( o C ).

EXEMPLO
Um mesmo numeral, como 34, pode representar números diferentes. Com efeito, o 34 representa o número trinta e quatro no sistema indo-arábico decimal, representa vinte e oito no sistema indo-arábico octal ( pois 3 x 8 + 4 = 28 ), representa cinquenta e dois no indo-arábico hexadecimal ( pois 3 x 16 + 4 = 52 ), etc.

EXEMPLO
Nas lides do cotidiano, são extremamente comuns as confusões entre os conceitos de número, numeral e algarismo. Vejamos algumas:

  • minha senha bancária tem três algarismos e não três números
  • o funcionário da CEEE registrou mal o algarismo das centenas do valor de meu consumo mensal de energia elétrica, e não: "...registrou mal o número das centenas do..."
  • ninguém poderia escrever uma data com números romanos, mas sim com algarismos romanos. Ainda mais importante: nenhum professor pode ensinar números romanos; contudo todos devem conhecer os algarismos romanos e saber escrever/ler numerais romanos!


EXERCICIO
A frase seguinte não está errada, mas pode ser melhorada através de um uso mais adequado das palavras número, numeral e algarismo. Pede-se providenciar essa melhoria:
No dia 26 de maio, começa a entrar o número 3 na frente dos números dos telefones da CRT.


EXERCICIO
Considere o seguinte texto:
Os paiela da Nova Guiné Papua não tem numerais falados. Para contar, eles apontam para diferentes partes de seu corpo, cada uma das quais representa um valor diferente.
Em função do dito acima, em cada vazio da frase abaixo, coloque a mais adequada das palavras: número, numeral, algarismo.
Para contar, precisamos ter a idéia de ...., mas e' perfeitamente possível contar sem ter o conceito de .....


EXERCICIO
Uma grande culpada das confusões que estamos tratando é a disseminação da Informática nos mais diversos setores da sociedade. Com efeito, boa parte da literatura e dos manuais sobre o assunto são escritos em inglês ou tradução de originais ingleses. Mas, o que tem uma coisa a ver com outra? Simples! Ocorre que a palavra algarismo não existe em inglês. A palavra mais aproximada que eles podem usar é digit ( dígito ), que indica um algarismo de sistema de numeração decimal ( base dez ).
Dizendo de outro modo: quando se escreve em inglês, não teremos nenhuma razão para fazermos erros se usarmos adequadamente as palavras número, numeral e dígito, desde que estejamos trabalhando com sistema de numeração decimal. O problema se complica ao tratarmos de assuntos de Informática, onde é bastante comum trabalharmos com os sistemas de numeração binário e hexadecimal. Daí ser extremamente comum encontrarmos os absurdos: "binary digit" e "dígito binário". Ora, dígito vem de dedo, e temos dez dedos nas mãos. Observe, ademais, que bastaria dizer "binário" em vez de "dígito binário", e se estaria absolutamente certo.
Como exercício, corrija as seguintes frases:
  • o barramento de meu computador tem 64 dígitos binários
  • um byte é formado de oito dígitos binários
  • um byte é formado de oito dígitos
  • "Para converter um número escrito no sistema binário, como 10100101, para o sistema hexadecimal, o primeiro passo é quebrar o número em conjuntos de quatro dígitos: 1010 0101; após isso..."
    ( note que essa frase tem mais de um erro )

EXEMPLO

Dada a imensa popularidade do tema "sistemas de numeração", é compreensível a existência de enorme quantidade de erros difundidos sobre o assunto. Entre os mais populares está a ignorância histórica declarada por frases como: "o sistema de numeração egípcio", "o sistema mesopotâmico", "o sistema de numeração grego", "o sistema chinês", etc. O fato é que cada um desses povos, bem como a maioria dos povos do passado, usou vários sistemas de numeração, as vezes com diferenças matemáticas até estruturais.
Nessa linha, dentre os quatro sistemas de numeração usados pelos egípcios antigos, examineremos os três exibidos na figura ao lado, que mostra os todos os respectivos algarismos e alguns numerais. Assim, pede-se:
  • Fazer uma tabela só de algarismos, para cada um desses três sistemas de numeração egípcios
  • escrever o numeral do número 24 em cada um desses três sistemas
  • idem para o número 155
  • dizer se existe alguma diferença matemática entre esses sistemas. Por exemplo, a diferença entre eles é meramente caligráfica?


3.- Origens do zero



( o texto que se segue ainda está imaturo, mas resolvemos publicá-lo devido ao grande número de perguntas que nos chegam sobre tópicos aqui abordados. Em breve, daremos uma versão bem melhorada do mesmo )

A história do zero é bastante complicada e para que não nos percamos na imensidão de detalhes é importante ter sempre em mente que:

  • se ter a noção de algarismo zero é bastante diferente de se ter a noção de número zero; só se teverá atingido a noção de zero quando se puder calcular com o zero
  • por muito tempo as noções de vazio e nada funcionaram como um véu impedindo que atinássemos a quantificar o nada, ou seja, que conseguissemos atingir a noção de zero; por outro lado, essas noções nas mãos de filósofos e místicos geraram ainda mais confusão e paradoxos, como:

    qualquer coisa é melhor do que nada; ora nada é melhor do que Deus, logo qualquer coisa é melhor do que Deus

  • as línguas européias confundem "a presença de nada" com a "ausência de algo", o que nos leva ao paradoxo acima; por outro lado, o sânscrito ( a língua que falavam os antigos indianos ) tem plenas condições de expressar claramente a diferença entre ausência de algo, ausência de tudo e presença do nada, o que torna o texto paradoxal acima sem sentido em sânscrito e até mesmo no hindi falado pelos modernos indianos (  agradecimentos a Coimbatore Iswaran por essa observação )

A tabela a seguir resume os principais acontecimentos associados à evolução do zero:
3 000 AC Vale do Indo ( Mohenjo Daro e Harappa ) há evidência de aparente uso de símbolo circular indicando o valor zero em réguas graduadas.
( os documentos da Civilização do Vale do Indo tem resistido a dezenas de tentativas de decifragem, cf. Gregory Possehl: The Indus Age, Univ. of Pensylvania Press )
3 000 AC O olho de Horus: sistema de representação e cálculo com frações inventado pelos egípcios e por muitos séculos usado pelos comerciantes da região mediterrânea; envolto em misticismo, trabalhava com frações binárias entre zero e um, sendo que um estava identificado com a pureza absoluta e zero à impureza absoluta
c. 2 000 AC O Sistema cuneiforme é inventado na Mesopotamia; apesar de ser um sistema de numeração posicional, os mesopotâmicos de então ainda não tinham a noção de algarismo zero
1 000 AC Os olmecas ( antecessores dos mayas ) inventam um sistema de numeração posicional, usado para marcar o tempo a partir de observações estelares, e o mesmo incluia um algarismo zero ( Ignácio Bernal: A Compact History of Mexico, 1974 )
500 AC Parmênides, filosofo grego, inventa o Paradoxo do Julgamento Negativo ( se uma afirmação declara que uma certa coisa existe, então sua negativa indicará algo que não existe; ora, uma frase sobre algo que não existe é uma frase sobre nada e então impossível ); Platon faz grande uso desse paradoxo em seus diálogos e concluiu que é impossível existir uma grandeza nula ( cf. nos informou Luigi Borzacchini )
400 AC Os chineses deixam casa vazia, em caso de zero, em seus ábacos de mesa
300 AC os mesopotâmicos passam a usar um algarismo zero medial ( como 205 e 120 1/4 no nosso sistema decimal ) em suas tabelas astronômicas, contudo nunca usam zero inicial ou final ( como em 250 ou 0,05 no sistema decimal ), cf. nos informou a Profa. Eleanor Robson, do Oriental Institute, Oxford University.
200 AC a palavra sünya ( pronuncia-se shunia e significa vazio, em sânscrito ) é usada para indicar casa nula quando da escritura de númerais no livro Chandah-sutra do matemático indiano Pingala. Mais tarde, as casas nulas passaram a ser indicadas por um ponto, o qual era chamado de pujyam.
150 dC Ptolemaios, em seu livro Syntaxis, usa rotineiramente um algarismo zero para representar no sistema sexagesimal os números de suas tabelas trigonométricas e de suas tabelas astronômicas; ele usa tanto o zero medial como o zero final; há controvérsia acerca da forma de seu algarismo zero, pois que temos apenas cópias do livro de Ptolemaios e essas cópias não usam o mesmo símbolo para o algarismo zero. Em particular, Otto Neugenbauer mostrou ser pouco provável que o zero de Ptolemaios fôsse a letra grega ômicron ( igual ao nosso "o" ), que é a letra inicial da palavra grega oudenia ( = vazio, sem valor ), pois esse símbolo aparece só em cópias da Syntaxis feitas no Período Bizantino
c. 350 dC Os mayas produzem um artefato, o Uaxactun - Stela 18 e 19, que é o documento mais antigo que deixaram tendo um zero; note que esse artefato não usa o sistema posicional; o mais antigo documento maya usando zero e o sistema posicional é o Pestac - Stela 1, datado de 665 dC, cf. nos informou Michael Closs.

A figura ao lado, feita com material do livro de Guillermo Garces Contreras ( Pensamiento matematico y astronomico en el Mexico precolombino. Mexico: Instituto Politecnico Nacional, 1982 ) mostra as representações mayas para o zero:

  • a primeira linha mostra como eles representavam o zero quando escreviam em livros ( códices ): usavam o desenho de uma concha ou o de um caracol, ambos símbolos associados à morte ou ao final de um ciclo; acha-se que o provável nome maya para o zero seria xixim, que significava concha.
  • a linha inferior mostra as representações do zero que usavam em inscrições em monumentos, como o Uaxactun: a forma humana usando adornos característicos dos deuses do mundo das trevas e o desenho da flor símbolo do calendário sagrado maya, a qual também era o emblema da eternidade e da regularidade dos movimentos cósmicos
    ( os melhores agradecimentos ao professor mexicano Victor Larios Ozorio por essas preciosas informações )
c. 500 dC Varahamihira, famoso matemático indiano, usa um pequeno círculo para denotar o algarismo zero em seu livro Panca-siddhantika. Especula-se que desde c. 300 dC os indianos vinham usando um ponto, o pujyam, para denotar o zero.
628 dC Brahmagupta, matemático indiano, em seu livro Brahma-sputa siddhanta, eleva o zero à categoria dos samkhya ( ou seja, dos números ) ao dar as primeiras regras para se calcular com o zero: um número multiplicado por zero resulta em zero; a soma e a diferença de um número com zero resulta neste número; etc )
c. 850 dC al Khwarizmi, após ter aprendido a calcular ao estilo indiano com o Siddhanta de Brahmagupta, escreveu um livro de aritmética chamado ( provavelmente ) Cálculo com os Numerais Indianos ( al arqan al hindu ); esse livro foi quem fêz a divulgação do sistema posicional decimal, e respectivas técnicas de cálculo, no mundo islâmico. Junto com isso veio a divulgação do zero no mundo entre os povos de língua árabe; dos nomes sünya, pujyam e sübra, usados no livro de Brahmagupta, al Khwarizmi adotou o terceiro para denotar o zero e daí a evolução: sübra -> siphra ou sifr ( árabe ) -> cifra e outras variantes nas línguas européias -> zephirum ( pronúncia latina do sifr ) e daí o termo moderno: zero.

( agradecimentos ao Prof Jeff Miller pela figura ao lado, referente à comemoração dos 1 200 anos de nascimento de al-Khwarizmi )
c. 980 dC O monge Gerbert d'Aurillac ( futuro Papa Silvestre II ) viaja pela Espanha islâmica onde aprende a calcular com o sistema indiano; ao retornar ao Mundo Cristão, tenta popularizar essa técnica de cálculo adaptando-a a um ábaco que utilizava pedras enumeradas, chamadas apices; sua tentativa não teve sucesso; em verdade, Gerbert parece não ter entendido a essência do cálculo indiano e, em particular, a importância do zero no mesmo, pois em seu ábaco o zero era supérfluo: o ápice zero tinha o mesmo efeito da ausência de ápice; quanto à origem do sistema usado por Gerbert: o historiador John W. Durham acha que os nomes usados por Gerbert para seus algarismos ( por exemplo o zero era chamado sipos ) sugerem que seu sistema não veio pelo caminho indianos - > árabes - > Norte da África - > Mundo Cristão mas sim via Mesopotâmia - > Síria ( nestorianos ) - > Norte da África - > Mundo Cristão.
c. 1 200 dC Fibonacci, que havia aprendido a calcular no sistema indiano em suas viagens de estudo pela África islâmica, escreve seu famoso livro, o Liber abaci, o qual junto com a tradução latina da aritmética de al Khwarizmi foram os grandes introdutores do sistema indo-arábico no Mundo Cristão e dois dos mais importantes livros da História da Humanidade. Que Fibonacci ainda via o zero com desconfiança pode ser percebido pelo modo que usava para se referir aos algarismos: novem figure indorum (  ie os nove algarismos indianos ) e o hoc signum 0... quod arabice zephirum appelatur ( o sinal zero ).

( agradecimentos ao Prof Kimberlin pela raríssima figura ao lado, que é uma foto da estátua erigida pelos comerciantes de Pisa em homenagem e agradecimento a seu ilustre conterrâneo Fibonacci )
c. 1 250 dC Sacrobosco, baseado em al-Khwarizmi e Fibonacci, escreve seu Algorismus vulgaris o qual tornou-se o livro de matemática mais popular nas universidades medievais e, assim, divulgou definitivamente o sistema posicional decimal e suas técnicas de cálculo na comunidade científica de então; a adoção desse sistema pelos comerciantes e resto da população foi bem mais lenta, e eles continuaram a usar os numerais romanos e o cálculo com ábacos ainda por vários séculos; assim que, para a população era frequente ter de "traduzir" para o sistema romano números escritos no sistema indiano: daí a origem da palavra "decifrar".

Examine na figura ao lado alguns passos da evolução dos algarismos, desde os usados pelos indianos da época de Brahmagupta, passando pelos algarismos usados pelos povos árabes e chegando aos algarismos que usamos no Mundo Cristão.
Lendo de baixo para cima:

  • algarismos Devanagari da época de Brahmagupta
  • algarismos Devanagari primitivo, anterior a Brahmagupta
  • algarismos árabes de c. 800 dC
  • algarismos árabes atuais
  • letras árabes eventualmente usadas como algarismos
  • algarismos indo-arábicos medievais
  • indo-arábico atual



4.- Exercícios



EXERCICIO

Segundo James A. Landau:
...semelhantemente aos documentos etruscos, do Vale do Indo temos apenas fragmentos de textos, o que não é material suficiente para possibilitar a decifragem de sua escrita. ( Consequentemente ), que evidência teríamos para se poder falar de matemática nessa civilização?
Pergunta-se:
esse texto é compatível com o que foi dito na cronologia acima?

EXERCICIO

No texto astronômico Lokavibhaga c. 450 dC aparece o verso ( sânscrito ):

viyadambarakasasasunyayamaramaveda

que poderia ser traduzido literalmente por:céu / ar /espaço /vazio / casal primordial / Rama / Veda, o que corresponde a: 0 0 0 0 2 3 4, e isso é lido como 4 320 000. Pede-se:
  • apontar a palavra sânscrita que acima está indicando zero
  • dizer se esse texto e data são compatíveis com o que foi explicado acima


EXERCICIO

Conforme nos informou Stacy Langton, o grande historiador A. Seidenberg, em seu artigo The Zero in the Mayan Numerical Notation ( in: Native American Mathematics, Univ. Texas Press, 1 986 ), concluiu que não há nenhuma evidência de que os mayas soubessem multiplicar. Pergunta-se:
poder-se-ia, a partir disso, afirmar que os mayas tinham o algarismo zero, mas não tinham o número zero?

EXERCICIO

  • explique por que na frase abaixo é muito importante a palavra "independente"
    a última descoberta independente do zero ocorreu na India
  • sendo que existem historiadores discordando de tal independência, aponte uma possível "herança do zero" recebida pelos indianos


EXERCICIO

Corrigir o texto abaixo:
a noção de zero que temos no Mundo Ocidental foi introduzida na Europa Medieval quando Fibonacci traduziu do árabe para o latim o livro de al-Khwarizmi.


EXERCICIO

Complete o texto abaixo:
Na India antiga existiam vários termos relacionados com o zero:
  • sünya que significava ....
  • pujyam que significava ....
  • sübra que significava vazio


EXERCICIO

Que teria a ver com o conceito de zero a seguinte inscrição ( em sânscrito ), típica de entradas de templos budistas?

sünya NamaskaAram KarishyAmi!
( tradução aproximada: Adore o nada )



EXERCICIO

Diga se está certo ou errado e corrija se necessário:

  • o conceito de zero surgiu em apenas três civilizações: babilônicos, mayas e indianos
  • desses, só os indianos chegaram ao conceito de número zero



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©2001, J.F. Porto da Silveira
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